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A fome no Brasil: o que se diz, o que se fez, o que fazer



A fome no Brasil: o que se diz, o que se fez, o que fazer


por Joao Bosco Bezerra Bonfim
Qualquer política em torno da fome deve observar como esta tem sido encarada no contexto social brasileiro: o que se disse, o que se pensa, o que se faz. O que dizem as ciências, o que faz a sociedade civil, como age o governo. Por último, verificar o que dizem os cientistas sociais em torno da resoluçao do problema da fome.


O que se disse (e se diz) sobre a fome:




Os dois maiores descobrimentos do século XX terao sido a fome e a bomba atômica, no dizer de Josué de Castro, que denunciou a situaçao de fome, apontou causas (econômicas) e efeitos desse fenômeno. Foi ele quem afirmou que, no Brasil, a fome é endêmica (e nao epidêmica): alimentaçao abaixo do necessario por falta de alimentos vitais, embora os famintos vivam em ambientes com abundancia de tais alimentos. A fome, assim como o sexo, é um instinto primario; e, para uma cultura racionalista, esses assuntos sao chocantes; daí, devido ao predomínio da razao sobre a conduta humana, a busca de acoberta-los. Por isso, somente após duas guerras (mundiais), que provocaram a morte, por fome, de 12 milhões de pessoas a questao passou a ser encarada objetivamente: em 1943, é realizada a Conferência de Alimentaçao de Hot Springs, que deu origem à FAO.

As comunidades científicas, que ja resolveram com tanto brilho problemas bastante complexos, sentem-se envergonhadas por terem sido incapazes de formular meios para acabar com a fome.
Mas que fome é essa, de que se fala, e que étao mobilizadora? É a “fome oculta, na qual, pela falta permanente de determinados elementos nutritivos, em seus regimes
habituais, grupos inteiros de populações se deixam morrer lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias”. Sao principalmente essas coletivas fomes parciais, essas fomes específicas, em sua infinita variedade, que constituem os estudos de Josué de Castro.
 O que a sociedade civil ja fez (e faz):


É possível localizar na história do Brasil uma série de lutas em torno da fome, particularmente as protagonizadas pelas classes populares, classificadas pela história oficial como simples revoltas ou atos de insubordinaçao. Mesmo que nao explicitada, era a fome que estava por tras de muitas dessas revoltas (Gohn, 1995):

a) Surgimento das sociedades mutualistas, na segunda metade do século XIX. Objetivo: assegurar a sobrevivência de famílias de assalariados pobres, ou auxilia-las em determinadas ocasiões, como enterros.
b) Movimento do “Quebra-Quilos”, entre 1850 e 1900. Objetivo: rever o sistema de pesos e medidas, pois as pessoas pobres eram “roubadas” em suas compras, pela manipulaçao das balanças.

Artigo baseado na dissertaçao de mestrado O discurso da mídia sobre a fome, UnB, 2000.


c) Revolta de Ibicaba, de 1851. Colonos das fazendas de café se revoltam contra o alto preço das mercadorias que lhes eram vendidas, contra os pesos e medidas utilizados e contra os juros.
d) Protesto Contra Alta de Gêneros Alimentícios em Salvador, em 1858, ocasionado pelas sucessivas epidemias defebre amarela e cholera morbus e a escassez contínua de alimentos. A palavra de ordem era “Queremos carne sem osso e farinha sem caroço”.
e) Revolta contra comerciantes estrangeiros contra o alto preço de mercadorias importadas e baixo preço pago pelos gêneros alimentícios nacionais, em 1872.
f) Lutas diversas pela melhoria de salarios e de condições de vida para os operarios e lutas no campo, no início do século XX. Muitas das lutas urbanas eram pelo rebaixamento dos preços dos gêneros alimentícios.
g) Comício contra a Carestia, em 1913, no Rio de Janeiro, que teria reunido mais de dez mil pessoas, segundo a imprensa. Esse movimento se espalharia por varias cidades do país, no Movimento contra a Carestia.
h) Atos contra o Desemprego e a Carestia, no Rio e em Sao Paulo, em 1914.
i) Movimento de Comitês de Combate à Fome no Rio de Janeiro, em 1918.
j) Movimento do Cangaço (1925-38), no Nordeste, associado às ações de Padre Cícero em Juazeiro sao associadas à questao da miséria.
k) Marcha da Fome, em 1931, liderada pelo Partido Comunista. A marcha tomou carater de movimento nacional, com atos públicos e passeatas, no Rio, Sao Paulo e Santos.
l) Campanha Popular Contra a Fome, em 1946, com uma Banca de Queixas, para reclamações contra comerciantes que vendiam caro ou especulavam com mercadorias.
m) Passeatas da Panela Vazia, entre 1951 e 1953. Nesse período, o Movimento Contra a Carestia atinge diversas regiões do Brasil.
n) Promoçao do Dia Nacional de Protesto Contra a Carestia, em 7 de agosto 1963, realizado emvarias partes do País.
o) Movimento do Custo de Vida, em 1972, em Sao Paulo e em outras capitais, fruto da articulaçao das Comunidades Eclesiais de Base, ligadas à Igreja Católica.
p) I Congresso Nacional de Luta Contra a Carestia, em 1980.
q) Saques em Supermercados e Lojas no Rio de Janeiro e em Sao Paulo, em 1983.
r) Movimento Açao da Cidadania, Contra a Miséria e pela Vida, em 1993. O movimento conseguiu a adesao da sociedade, com a criaçao de mais de 3.000 comitês organizados em todo o País, a maioria deles ligados a funcionarios de empresas públicas.
Como tem agido o governo:
Em primeiro lugar, é preciso considerar que, nao sendo a fome no Brasil um
problema epidêmico, sua natureza é política e econômica, ou seja, nao provém de
calamidades ou de um regime de escassez, mas, sim, da falta de recursos da
populaçao mais pobre para comprar alimentos. Nesse sentido, cabe considerar o
quanto a fome tem sido objeto de políticas governamentais ou, pelo contrario, o quanto
tem sido desconsiderada.

Ao longo do século passado os mais diversos planos e ações governamentais foram
implantados, com criaçao de instituições públicas de diversas denominações, sem sucesso.
(Coutinho Humanidades, 17: pp. 106 a 113):
a) Em 1918, em resposta à greve operaria de 1917, é criado um órgao para tabelar
gêneros alimentícios de primeira necessidade. Atacado pelos grandes proprietarios de
terra, o órgao deixa de existir e em seu lugar é criado outro, para fomentar a agricultura.


b) Em 1938, é lançado o salario mínimo.Reconceituado em 1946, pela
Constituiçao, deveria “satisfazer as necessidades do trabalhador e de sua família”; mas,
nao obstante a retórica oficial, essa medida nao resolveu os problemas alimentares.
c) No período do Estado Novo (1937-1945), sob a influência de eminentes
nutricionistas e sociólogos, os conceitos sobre o papel do Estado na alimentaçao influíram
de algum modo na política oficial.
d) No período de 1945 a 1964, predomina a política desenvolvimentista de
incentivo à industrializaçao; com isso, em prejuízo do salario dos trabalhadores, vencem
os industriais, com sua política de baixos salarios.
e) Depois da 2a. Guerra Mundial, os Estados Unidos, por meio de agências
específicas, passam a contribuir com os países subdesenvolvidos no quesito alimentaçao.

Sob influência dessa política é criado o Unicef, o Fundo das Nações Unidas para a
Infancia.
A seguir, algumas datas, órgaos e iniciativas governamentais da política de
nutriçao brasileira, segundo Coutinho:
- 1940: é criado o Serviço de Alimentaçao e Previdência Social (SAPS), para atender aos
segurados da previdência, selecionar produtos e baratear preços; instalar e manter
restaurantes para trabalhadores; fornecer alimentos basicos a trabalhadores;
–1943: é criado o Serviço Técnico de Alimentaçao Social, para propor medidas para a
melhoria alimentar;
–1945: surge a Comissao Nacional de Alimentaçao – CNA, com a missao de propor uma
política nacional de nutriçao;
–1946: o governo brasileiro solicita ajuda ao recém-criado Unicef para buscar soluções
para aalimentaçao das crianças brasileiras;
–1950: com o aumento das exportações de carne bovina para os EUA, sobem os preços
da carne no Brasil;
– 952: um inquérito sobre os gastos com alimentaçao revela que a classe operaria
empregava de 40% a 52% de seus gastos com alimentaçao, em algumas capitais;
–1954: é criado o programa nacional de alimentaçao escolar;
–1954: o Congresso Americano aprova a “Lei do Alimento para a Paz”, que destina
alimentos para países como o Brasil, motivado pelos efeitos da revoluçao cubana;
–1962: criados sistemas de armazenamento: Superintendência Nacional de
Abastecimento (Sunab), Companhia Brasileira de Alimentos (Cobal), Comissao de
Financiamento da Produçao (CFP) e Companhia Brasileira de Armazenagem (Cibrazen),
varios órgaos com funções superpostas e ineficazes para combater os problemas de
alimentaçao dos brasileiros: no Sul, as grandes companhias se dedicam à agricultura de
exportaçao, protegida por subsídios e política cambial favoravel; no Nordeste, os
atravessadores dominavam o mercado;
- 1964: militares recorrem à USAID para reativar o programa de alimentaçao escolar;
firmam compromissos com companhias de alimentaçao processada;
- 1967: extinto o SAPS – Serviço de Alimentaçao e Previdência Social, que tinha alto
poder de mobilizaçao social;
- 1972: criado o INAN – Instituto Nacional de Alimentaçao e Nutriçao, para elaborar
política nacional de alimentaçao e nutriçao;
- 1973 e 1974 criados o I e o II Programa Nacional de Alimentaçao e Nutriçao, para
alimentar os gruposmaterno-infantis, escolares e trabalhadores;
- 1974: promovido o Estudo de Defesa Familiar, o qual detecta que somente 32% da
populaçao brasileira se alimenta adequadamente;


- 1984 a 1988 (Nova República): funcionam cinco programas de alimentaçao: Programa
de Alimentaçao Popular (PAP), Programa Nacional do Leite (PNL), Programa Nacional de
Alimentaçao Escolar (PNAE), Programa de Nutriçao e Saúde e Programa de
Complementaçao Alimentar (PCA). Nao obstante terem aumentado a distribuiçao de
alimentos e terem incluído associações de moradores na distribuiçao, tais programas
serviram mais a propósitos clientelistas, em que predomina a noçao de favor, nao
favorecendo a cidadania (Barreto 1988: passim).
– 1991 a 1993:
O Governo Collor encarrega-se de desestruturar os órgaos de
abastecimento que, se nao atendiam a uma política de distribuiçao de alimentos, pelo
menos significavam uma “presença” do governo no setor (Barreto 1988: passim).
Recentes intervenções: de “fome” para “segurança alimentar”
1993: o Presidente Itamar Franco declara o combate à fome como prioridade absoluta. É
uma proposta de política nacional de segurança alimentar: mapeamento da fome no
País (Mapa da Fome), elaboraçao de um Plano de Combate à Fome e à Miséria e a criaçao
do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA);
1994: Realizada a I Conferência Nacional de Segurança Alimentar.

No Brasil havera Segurança Alimentar quando todos os brasileiros tiverem,
permanentemente, acesso em quantidade e qualidade aos alimentos
requeridos e às condições devida e de saúde necessarias para a saudavel
reproduçao do organismo humano e para uma existência digna.
A Segurança Alimentar ha de ser, entao, um objetivo nacional basico e
estratégico.
Deve permear e articular, horizontal e verticalmente, todas as
políticas e ações das areas econômica e social de todos os níveis de Governo e
ser perseguida por toda a sociedade, comprometendo todos os segmentos
sociais, seja em parceria com os distintos níveis de Governo, ou em iniciativas
cidadas. (CONSEA, 1995: 88-9).
Avaliaçao sobre as políticas mais recentes:
a) embora o CONSEA1 tenha sido inovador em relaçao às ações de combate à fome
e à própria forma de participaçao da sociedade, sofreu muitos entraves, em funçao de sua
natureza, pois era órgao consultivo e nao executivo; dependia sempre da açao da
burocracia estatal, que, por vezes, entravou ações fundamentais;
b) o Atendimento aos Desnutridos e às Gestantes em Risco Nutricional foi aquém
do pretendido; a burocracia entravou a distribuiçao de leite; mas o balanço foi positivo,
pelas inovações trazidas;
c) a Descentralizaçao da Merenda Escolar foi avaliada positivamente;

1

O CONSEA – Conselho Nacional de Segurança Alimentar foi criado pelo decreto nº 807, em 24 de abril de
1993. Embora a previsao fosse de que a presidência caberia ao Presidente Itamar Franco, ela foi ocupada por
D. Mauro Morelli, Bispo de Caxias-RJ; o cargo de Secretario-Executivo foi ocupado pelo empresario
brasiliense Mauro Dutra. No Conselho tinham assento 8 ministros de Estado e 21representantes da sociedade
civil, sendo que Herbert de Souza, o Betinho, era um deles. Uma estrutura semelhante havia sido prevista na
proposta de Governo Paralelo do Partido dos Trabalhadores.


d) o Programa de Alimentaçao do Trabalhador nao chegou a se beneficiar com as
propostas do CONSEA de ampliaçao de atendimento;
e) o Programa de Distribuiçao Emergencial de Alimentos (PRODEA), em sua versao
nacional teve frutos positivos, pela inovaçao na gestao, que incluía segmentos da
sociedade civil;
f) o Programa de Assentamento de Trabalhadores Rurais teve resultados
modestos;
g) o Programa de Geraçao de Emprego e Renda nao “vingou”;
h) o Programa Embala Brasil, voltado para crianças, representou um espaço para
articulaçao de instituições e aumentou a consciência sobre os problemas da infancia em
torno de temas como a erradicaçao do trabalho infantil (Pereira, 1997).
Enfim, com o CONSEA houve significativos avanços, em termos de participaçao
popular, representados pela instituiçao do CONSEA, embora pudesse ter havido um
avanço maior.

A resoluçao do problema da fome:
A questao da fome envolve a adoçao de políticas sociais genuínas, isto é, que
incorporem a redistribuiçao de renda e de poder.
Tais políticas sociais para a erradicaçao da pobreza nao podem ser feitas sem a
participaçao do pobre. Embora seja necessaria “assistência” para os grupos incapazes de
sustentaçao produtiva, por razões de direito à sobrevivência, o “assistencialismo” “apenas
recria a miséria, ja que esta por definiçao desvinculado de qualquercompromisso
estrutural de soluçao”.(Demo, 1996b: p. 84).
Para Demo, uma política social precisa ser emancipadora. E tera esse carater a
política social que contribua para a cidadania; políticas que nao atendam a esse requisito
serao ou tuteladoras ou assistencialistas.
A cidanania tutelada “expressa o tipo de cidadania que a direita (elite econômica e
política) cultiva ou suporta, a saber, aquela que se tem por dadiva ou concessao de cima.

Por conta da reproduçao da pobreza política das maiorias, nao ocorre suficientemente
consciência crítica e competência política para sacudir a tutela”.(Demo, 1995: p. 6).
Ja a cidadania assistida “expressa forma mais amena de pobreza política, porque ja
permite a elaboraçao de um embriao da noçao de direito, que é o direito à assistência,
integrante de toda democracia”.(ibidem). Mas tanto uma como outra forma de cidadania
contribuem para a reproduçao da pobreza política, “mantendo intocado o sistema
produtivo e passando ao largo das relações de mercado, nao se comprometendo com a
necessaria equalizaçao de oportunidades”.Nesse sentido, mesmo a “cidadania assistida”,
por atrelar a populaçao a um sistema de benefícios estatais, é enganadora, por maquiar a
marginalizaçao social. Portanto, a superaçao da fome deve estar aliada à superaçao da
pobreza econômica e da pobreza política.

Uma consideraçao essencial sobre a resoluçao do problema da fome passa pelo
mercado, uma vez que este representa a resposta que as sociedades oferecem ao
“desafio de produzir e intercambiar bens e serviços,frente às exigências de manejar as
condições de subsistência e de satisfazer as necessidades materiais em contextos, de
modo geral de escassez”.(Demo, 1995: p. 7). Mas esse mercado tem como lógica a
concentraçao e a formaçao de monopólio, por “privilegiar os que têm sobre os que nao


têm, e todas as estratégias políticas que facultam manter ou alargar as vantagens
disponíveis ou desejaveis”.(ibidem).
Nao se resolvera, pois, o problema da fome, pois, enquanto nao se tocar nas
relações de assimetria de propriedade e poder do mercado, colocando-o como meio e nao
como fim, fazendo com que esteja a serviço da verdadeira cidadania.
Bibliografia:
CASTRO, Josué de. Fome, um tema proibido. Petrópolis : Vozes, 1983. 154p.
––––––.
Geografia da fome. Rio de Janeiro : Antares, 1980. 361p.
DEMO, Pedro. Cidadania tutelada e cidadania assistida. Campinas : Autores Associados, 1995.
125p.
GOHN, Maria da Glória. História dos movimentos e lutas sociais – a construçao da
cidadania dos brasileiros.
Sao Paulo : Loyola, 1995. 213p.
GOHN, Maria da Glória. A açao da cidadania contra a miséria e pela vida ou Quando a
fome se transforma em questao nacional. In: GAIGER, Luiz Inacio (Org.). Formas de
combate e resistência à pobreza.
Sao Leopoldo : Unisinos, 1996. p. 23-57
PEREIRA.
Rosana Sperandio. Participaçao da sociedade civil no governo Itamar Franco: o
Conselho de Segurança Alimentar – Consea. Brasília : 1997. 167p. Dissertaçao
(Mestrado em Política Social) - Departamento de Serviço Social da Universidade de
Brasília, 1997.

 


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